quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Sem menos

Viu a-que-la moça, pela primeira vez, numa fria madrugada qualquer, decorar datas nunca foi seu forte. Além do sentimento de inauguração de um possível relacionamento, parecia, inexplicavelmente, que a conhecia há muito mais tempo (bem mais do que meros cinco minutos ou poucas frases, como preferir), sentia que aquilo vinha de outras vidas, quem sabe? Por certo que nunca acreditara nesse papo de “outras vidas”, mas queria buscar alguma explicação praquilo tudo, ao mesmo tempo que não buscava entendimento algum. Contradições, como sempre.

Quis falar-lhe (falar o quê?). Pensou, repensou, pensou mais uma vez (um filme, um livro, uma música, o quê?) e acabou pensando mais, a impulsividade nunca fora seu forte e nesse momento poderia ser o fim de tudo, um fim sem começo. Porém, aquela era sua ú-ni-ca chance, perdera tantas outras oportunidades e não queria perder mais essa, que lhe parecia a chance das chances.

Mãos suando, coração saindo pela boca, frio, voz trêmula, tímida, disse qualquer coisa, não esperava retorno, era qualquer coisa. Disse que não costumava abordar pessoas desconhecidas, aliás, por mais estranho que parecesse, só conversava com conhecidos e que nunca tinha começado um assunto com pessoa alguma. E, naquele momento, não poderia evitar aquilo.

Sem pretensões, olhou para os lados, não ousou encará-la, desviou sua atenção, pensou em Billie Holiday e seus olhos tristes, a voz inconfundível martelava em sua cabeça. Do nada, saiu do estado de transe, Lady Day desaparecera, uma voz paradoxal chegou aos seus ouvidos. Só via os cabelos castanhos e os olhos cortantes (pela primeira vez, olhou no fundo dos olhos de alguém, sentia-se invadindo algo tão íntimo que baixou os olhos de novo).

Começou a sentir-se diferente, mundo parado, isolamento, só as duas em meio ao vento gelado, que deixava as suas mãos ainda mais frias. Tudo lhe parecia inédito demais.

Coração na mão, frio e suor, pernas sem firmeza, pés sem chão, momento tenso (não, não era para ser assim, a ansiedade não fora convidada, mas entrou arrombando a porta). Tentou pensar rápido, procurava algo interessante para dizer (sempre querendo impressionar futuros amantes), mas aquela situação não contribuía (pense rápido! pense rápido! quer dizer, não. não pense!)

Falou com um sorriso no rosto, tentou controlar a voz trêmula, não queria demonstrar tamanho nervosismo, foi pegar uma bebida para as duas, precisava respirar, necessitava de certa estabilidade, o álcool sempre ajuda nessas horas inexatas. Sem ar, estômago revirado (pra que horas?). Conversa sem sentido foi o que surgiu dali, porém, sentia todo o sentido.

A moça era de longe (sempre os de longe) e ela temia por isso (como querer alguém que não se pode ter ao alcance dos olhos e das mãos?). Apesar de tudo, queria aqueles olhos que a engoliam.

Apelaria para quem? Remédios contrabandeados? Músicas de fim de noite de rádios clandestinas? Conversas semanais com uma desconhecida? Deus – deuses – santos - mãe – copos – amigos – putas – livros – corpos – Leminski – abismos – trabalhos – janelas – rascunhos – macumbas – benzedeiras – Lispector – rezadeiras – pai – cigarros – exorcistas – filmes pensantes – cafés – peças rodriguianas – comédias desgastadas – diabos – antigas paixões – Caio F. – escritas – navalhas- barbitúricos – alucinógenos? Para quem ou para o quê?

Abriu-se, como uma flor, sem nenhuma vergonha ou culpa, para àquela estranha, mas que nunca lhe parecera tão desconhecida assim. Desnudou-se em palavras, sem pudor ou medo, não levava nada nos bolsos ou nas mãos, como numa música antiga. Entregava-se ali mesmo.

Pensava “de novo não!”, mas ao mesmo tempo queria “de novo sim! sempre”. Sofria por querer, era uma dependente de tempestades.

A conversa estendeu-se por horas e mais horas, não queria deixá-la, não queria ser deixada. Qualquer despedida poderia ser um movimento fatal, porém, a moça teve que partir, mas prometeu que voltaria em breve, falou com tanta convicção, que apesar de toda a desconfiança, resolveu acreditar. E partiu também, era preciso descansar, era preciso sonhar.

Chegou à casa, olhou-se no espelho, um misto de alegria e tristeza abateu-se sobre seu olhar turvo e embriagado. Algo de vazio e, ao mesmo tempo, de satisfação preenchiam-na, era muita loucura para uma noite só, para uma vida só, para uma alma só. Repetia para si mesma que não podia, que aquilo poderia significar um novo fim, que seria sua perdição, mas agarrava-se, com unhas e dentes à imagem da outra, ao cheiro que ficou gravado em sua roupa durante o longo abraço, não queria apagá-la de suas retinas fatigadas, não podia e não queria. Ficou olhando para o espelho durante muito tempo, perdeu-se ali.

Deitou-se, rolava de um lado para o outro, horas assim. O sol já estava despontando no céu. “Dia nascendo e eu morrendo”, pensamentos piegas e novelescos lhe eram corriqueiros, filosofias baratas também. Pedia a si ou a Deus, não conseguia se decidir bem, para sonhar com os olhos cortantes.

Adormeceu.

Amanhã, quem sabe?

Um comentário:

Renato disse...

aaaaaah guriaaa! esse conto é lindo. quero pra mim, já tô fazendo copiando e colando pro meu pc... ahauhauahuaha

continua escrevendo assim... quero ler seus roteiros e contos que inspiram qualquer um.

;DDDD

abraços!