sábado, 22 de dezembro de 2007

Então

ELA abriu a porta.

ELE sentado no sofá, esperando nada acontecer

Tudo um pouco bagunçado, a bagunça é mais fácil. Confusão. Cheiro de coisa guardada, de dor crescente. Cinzeiro cheio, copos e garrafas vazios. Começava uma chuva fina lá fora, o vento sacudia a cortina da janela do canto da sala que ficou aberta durante dias, imperceptível.

Nenhuma palavra, nenhum sorriso, nenhum olhar. ELE sentado, ELA entrando. Nada restou só uma dor fina, persistente, um reumatismo, talvez.

ELE olhando pra nada, pro vão, pro vazio que sobrou das tardes no parque: o sol no rosto, a brisa, a grama verde, a toalha xadrez, aquela música antiga que lhes pertencia, o que antes era tudo, agora reduziu-se a poeira cobrindo os móveis. ELA remexendo o velho guarda-roupa. Uma mala, algumas roupas e sapatos, algumas lembranças de noites chuvosas, mas alegres, românticas de vez em quando. A chuva aumentando, o trânsito crescendo junto com ela.

Tudo tão remoto pra ELE, tão sem sentido pra ELA

Um raio iluminou o interior da sala. ELA fechou a janela e a cortina. Dirigiu-se à cozinha. Tudo fora do lugar, tudo o que já não restava daquilo que houve. Um velho disco de Bossa tocava na antiga vitrola, o chiado incomodava a ELA, era afeita às modernidades, mas ELE amava aquilo, gostava do que era antigo. Amou-a também, mesmo com todas as diferenças e divergências. Talvez ela o amasse também, mas e agora? O que fica?

Pegou alguns livros empoeirados da estante, jogou junto com as roupas e calçados, na mala sem muitas preocupações. ELE nada fez, nem reclamou quando ELA pegou “A Faca no Coração”, que era d’ELE, o seu amor, o seu Trevisan. De que adiantaria brigar por um livro? As coisas já estavam desgastadas demais, até sua voz. ELA continuava a passear pela casa que um dia lhe pertenceu também. Parecia não mais reconhecer aquilo tudo, parecia mais cheia, mas vazia de algo. Talvez fosse culpa da desordem ou da sua ausência e até mesmo da ausência d’ELE, ausência de alma.

A sala continuava abafada e a buzinas que chegavam ao 7º andar, quebravam um pouco daquele silêncio dolorido, tentavam arrancar aquele grito preso das discussões passadas, aquela náusea seca que rondava os dois. A chuva tornou-se mais forte e ELE levantou-se e foi até a cozinha. O primeiro movimento em horas ou dias ou até mesmo meses. Talvez o som do copo que ELA quebrou na busca de coisas que não existiam mais o tenha despertado da inércia da desilusão. Seus olhos não estavam mais tão nublados, porém continuavam secos.

ELA procurava mais algumas coisas, não sabia se algumas lhe pertenciam ou se eram do outro, tudo tinha se misturado nesses anos de convivência. Nada disseram, nenhum suspiro, só o chiado do disco que tinha acabo, o som dos saltos d’ELA quando andava procurando o que tinha perdido e o barulho longínquo da cidade que tentavam quebrar toda a tensão existente, mas nem os trovões conseguiam essa proeza. E a tempestade se fazia.

ELA desistiu de procurar, ELE tentou desencavar um copo limpo da montanha de louças que estavam depositadas sobre a pia, mas nada estava limpo ali desde que ELA se foi. Foi até o balcão e pegou uma garrafa de uísque que estava quase acabando, iria beber no gargalo, coisa que ELA odiava, mas nada mais importava, não essas pequenas implicâncias cotidianas.

ELA foi até a porta, parou e olhou o apartamento, como se estivesse esquecendo algo, mas não sabia o que era. ELE seguiu-a com os olhos. ELA deixou as chaves na estante. Continuou a olhá-la. Até que a porta fechou-se e ELE não derramou uma lágrima sequer, um pouco de orgulho o invadiu, mas refletiu que não havia chorado, porque chorou demais, estava seco. Ficou olhando a porta branca com a garrafa de uísque nas mãos durante horas, dias, meses.

E lá fora a cidade completamente alagada.

Um comentário:

alex disse...

Lindeza Gal, escreve um livro.